você está lendo Estamos todos nos adaptando

adaptando

Tenho carregado um sentimento suspeito. Algo que de alguma forma sempre fez parte de mim, mas que de uns tempos pra cá, começou a transbordar aos pouquinhos. Posso ouvir a goteira no intervalo de uma música e outra. Não sei se deveria dizer agora, mas isso tem me consumido mais do que deixo parecer. Basta uma faísca de tristeza para que tudo ao meu redor se torne absolutamente questionável. Queria ter as certezas de antes. Era tão mais simples quando eu achava que sabia todas as respostas – o conforto da superficialidade. Hoje nem sei se estou pronta para ouvir as perguntas. Nem ligo se a razão está ou não aqui.

– Crescer é assim. Você aumenta de tamanho e ganha mais espaço aí dentro.
– Mas eu detesto esse vazio, meu senhor.
– E quem gosta, garota?

Nessa vida estamos todos nos adaptando a alguma coisa. Todos. Eu, você, as inimigas, o pobre coitado do entregador de pizza que detesta dias chuvosos como hoje e até a polêmica Miley Cyrus. No final das contas, em realidades um tanto quanto diferentes, óbvio, queremos basicamente a mesma coisa dos dias que vem e vão: paz.

Ô palavrinha de significado complexo, minha gente. Mas não foi sempre assim, lembra?

Até o fim do maternal era tão simples descrevê-la. Uma pombinha e pronto, todo mundo sabia exatamente o que eu queria dizer. E ela nem precisava de fato parecer um pássaro, viu? Era só rabiscar as curvas das asas e um triângulo pro bico – a folha do papel já era branca. Depois, nas aulas de história do ensino médio, paz virou o contrário de guerra. O intervalo do conflito entre dois países ou estados que disputam bens naturais e poder. Meu professor dizia com tanta convicção, que eu nem pensei em contestar. Então tá, paz é isso.

Passaram-se horários longos, dias demorados, semanas curtas, meses solitários, semestres complicados e anos intensos. Deixei de confiar em quem podia ler o meu diário, troquei de CEP três vezes, aprendi a gostar das bandas barulhentas do meu irmão, me apaixonei por uns carinhas aí – continuo tendo o mesmo dedo podre de antes – e escrevi um monte de textos como esse só pra tentar organizar meus sentimentos mais secretos.

– Onde você guardou o amor?
– Acho que eu deixei no caminho.
– Então volte.
– E se eu me perder?
– Você não iria muito longe sem ele.

Sou taurina, mineira e teimosa. Não acredito nessas convenções baratas, mas como minha mãe sempre disse antes de boa boa bronca, quando coloco algo na cabeça ninguém consegue tirar. Em todos sentidos. Não falo muito e escondo coisas até de mim mesma. É uma luta interna. Preciso sempre ir até o final, mesmo que esse seja um caminho solitário. Dito assim, parece besteira, mas ainda não sei lidar com os meus próprios demônios de outra forma. Tô tentando. Tô tentando. Tenho é medo de me corromper. Medo de me tornar vulnerável de novo. Medo de compartilhar a confiança que me resta. Quando ninguém está por perto, ela ainda me faz companhia.

– Por que é tão mais simples para as outras pessoas.
– É simples porque não é com você.

Parece mais fácil quando deixamos o mundo saber o quanto dói, mas fazê-los pensar que existe um culpado não nos torna inocente. Somos donos dos nossos próprios medos, de toda a insegurança acumulada, escolhas e também dos receios que a vida nos fez ter. Armadura nenhuma nos protege de nós mesmos. Ou seja, tudo isso infelizmente não significa que conseguiremos controlar essa bagunça em forma de insônia ou ansiedade, mas nos mostra que se trata de uma pendência interna que antecede qualquer promessa feita e desfeita.

Tempo. As memórias vão fazendo uma trança nos fios de cabelo da nossa história. Carregamos ali um pouco de tudo e todos que conhecemos – a parte madura e também a parte podre. Vamos transferindo manias, conhecimento e afeto por aí. Até que um dia as antigas músicas servem de trilha sonora para novos momentos, as palavras que um dia perfuraram nosso peito são usadas numa mesa de bar e o cheiro doce no travesseiro desaparece por completo. Nós continuamos os mesmos. Eles continuam os mesmos. Mas isso não quer dizer nada pois não se trata de um jogo de sete erros – são muito mais.

– O que isso tem a ver com a paz, garota?
– A última vez que eu a vi, estava escondida num olhar.

Se a vida fosse um ônibus, eu diria que somos todos passageiros. Alguns descem mais cedo. Outros nos fazem querer mudar de lugar. Hora estamos distraídos olhando através da janela, hora só queremos um pouco de conversa fiada pro trajeto parecer mais curto. Às vezes adormecemos sem querer no ombro de um desconhecido, às vezes fechamos os olhos por querer. O importante, eu diria, é continuar sentindo vontade de chegar em algum lugar.

São seis da tarde. Cidade grande. Ônibus lotado.

Sobre a palavra com três letras? Desenhei cinco pássaros no meu braço e tenho aguardado ansiosamente o fim do conflito entre minha cabeça e o meu coração. Pois é. Eles tinham toda razão.