Sapato baixo, calça larga e cabelo preso. Esquentou e seus ombros tensos agradecem. Que cara bonita é essa? Já logo no elevador. Ah, devo ter dormido bem. Bom dia, bom dia. Olha, você está muito bonita hoje. Um fala, outro concorda. E pelos corredores, sorrisos dão continuidade aos elogios. O que é? Que segredo ela guarda? Que novidade é essa? Na cozinha perguntam: novo amor? No estacionamento perguntam: voltou com alguém?
No restaurante, na hora do almoço: é alguém novo? Cruza com um namorado antigo “nossa, você tá muito… é o quê? Sexo? A noite toda? Conta, vai, eu agüento ouvir”. Contar o quê? No espelho, enquanto escova os dentes, fecha os olhos e sabe pra si o segredo: ninguém. Não gostar de ninguém. Nada. Nem um restinho de nada. Nem de tudo que acabou e nem de nada que possa começar. Nada. Pouco importa qualquer outra vida do mundo. Não é nem pouco, é nada mesmo. Um dia inteiro para achar gostosas coisas bobas como um pacote de pipoca doce, um tênis pink ou a hora do banho quente com músicas recém baixadas e o tapetinho vermelho.
Um dia inteiro sem escravidão. O celular, o e-mail, o telefone de casa, o ar, o interfone, a rua. São o que são e não carrascos que nada dizem e nada trazem. Um coração calmo, se ocupando de mandar sangue para as horas felizes de trabalho, estudo, yoga, massagem, dormir, bobeiras, pilates, comer, rir, cabelo, filmes, comprar, trabalhar mais, ler, amigos . É isso. Uma agenda enorme que a ocupa de ser ela e não sobra uma linha de dia pra lamentar existências alheias. Linda, ela segue. Linda e feliz como nunca.
O segredo do espelho, escovando os dentes, sozinha, aperta os olhos, segura a alma um pouco sem respirar. Segura a pasta pensando que é um pouco de alma consistente na boca. Não cospe, suporte. Ela pode finalmente suportar seu peso e não dividir isso nem com o ventinho que entra pela janela. Nem com o ralo que a espera boquiaberto. A sensação é a da manhã seguinte que o papai Noel deixava os presentes: não é mentira, é só um jeito de contar a verdade com algum encantamento.
QUER SABER QUEM ESCREVEU ESSE TEXTO?
Com certeza você já ouviu ou viu algo da Tati Bernardi por aí. Talvez tenha visto uma cena em algum programa na Rede Globo ou tenha lido um texto no perfil de alguém. Seus tem o estilo que toda adolescente gosta, confusão, mistério e muito amor. Tati Bernardi é paulistana e nasceu em abril de 1979. É formada em propaganda e marketing pela Universidade Mackenzie e fez pós graduação em vários cursos especializados de roteiro e cinema. Trabalhou nas melhores agências de propaganda do país durante oito anos e nos últimos dois anos se dedicou basicamente à literatura. Lançou os livros “A mulher que não prestava” e “Tô com vontade de alguma coisa que eu não sei o que é” pela Panda Books e atualmente colabora para revistas da Editora Abril como colunista e escreve programas de televisão para a Rede Globo.