A Roda Gigante

09 de junho de 2011
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Enquanto a escuridão da noite se aproximava, como de costume, toda a cidade se preparava para a festa.  Nas janelas das casas do beco, no banco cinza e velho das praças ou nos balcões da lanchonete dos melhores salgados do mundo. O assunto era o mesmo e a ansiedade das pessoas também.

Valentina também estava ansiosa para a exposição. Mas não pelas bebidas ou pelo show como a maioria dos seus amigos, e sim pelo cheiro de churros quentinho e as infinitas bancadas de doces que enfeitavam e deixavam toda a rua com um ar diferente.

Todos já estavam prontos quando ela finalmente resolveu entrar no banho. Odiava ser apressada, então preferia ficar sempre por último. Não ligava de chegar sozinha nos lugares, pra falar a verdade, até gostava.

Sua pele branca e pálida se tornava levemente rosada no inverno. Ao se despir no banheiro, ficava alguns minutos se encarando no espelho da pia.  Talvez ainda não tivesse se acostumado com o seu novo reflexo.  Talvez ainda não soubesse, mas Valentina já não era a mesma garotinha de sempre. Pelo menos não por fora.

Desde o último ano, seus cabelos encaracolados e ruivos cresceram e os seus olhos que antes só expressavam meiguice, agora com um pouco de rímel, esbanjam sensualidade.

No embaçado do vidro do box, sua frase predileta: “Life keeps going, with or without”.

Depois do banho, vestiu seu vestido florido preferido, sua jaqueta de couro e procurou por toda parte sua sapatilha azul de camurça com laço. Para as entendidas de moda, aquele não era um look perfeito, mas para Valentina aquele era o look ideal.

Fechou a porta, e quando chegou na esquina da rua de casa, voltou para conferir se realmente tinha feita isso.  Enquanto caminhava até a rua da exposição, era impossível não se lembrar do que acontecera ali no ano anterior. Para fugir dos seus pensamentos, ligou o fone de ouvido no último volume e cantarolou até o local sua música predileta.

A rua estava como costumava estar. Maças do amor, cocadas e pipocas por toda a parte. A iluminação amarelada, que ficava por conta das diversas luzes espalhadas pelas árvores, também estava presente.  Enquanto olhava paras os lados e caminhava pela rua em busca de um rosto conhecido (e que a fizesse ter vontade de segui-lo) já comia um churros sabor doce de leite, seu predileto.

Tudo ia bem até avistar de longe o grupo de amigos do Eduardo. O motivo pelo qual estar ali era um desafio. Desviou rapidamente, e entrou para o parque sem que a notassem. A ideia de ele ter vindo para a festa a assustava. Era uma sensação nova e estranha, que apertava o peito mas que a fazia imaginar coisas. Ter esperanças.

Enquanto se recuperava daquela maldita sensação, entrou em uma barraca de bijuterias e comprou algumas pulseiras. Valentina não usava brincos ou colares, mas amava preencher seu pulso com coisas aleatórias. Dizia que cada uma dela tinha um significado diferente. Comprou aquela para registrar a primeira exposição sem ele. Não sem o amor, apenas sem ele.

As luzes em movimento a atraiam tanto, que acabou esquecendo de encontrar os outros. Caminhou então em direção ao seu brinquedo preferido, a roda gigante.

As filas estavam grande, mas não maiores que a vontade de enxergar tudo aquilo lá de cima. Desde tudo que aconteceu, ela nunca mais subiu tão alto. De alguma forma, a altura a fazia se sentir bem. Como não estava acompanhada, nos minutos em que ficou esperando, buscou um rosto conhecido nas pessoas ao seu redor. Sem sucesso, aguardou a sua vez e torceu pela sorte para que fosse alguém no mínimo, silencioso.

Enquanto olhava para o lado do carrocel, e sorria ao ver as crianças se divertindo, sentiu um perfume familiar no ar.  Em menos de cinco segundos, todas as lembranças voltaram e aquela sensação de antes também. Era ele. Ninguém mais na cidade usava tal perfume importado. Era o dele.

O destino às vezes gosta de brincar com a nossa coragem. Talvez ele queria saber se nós sabemos diferenciar passado, presente e futuro. Saber se nós realmente queremos que essas palavras signifiquem coisas diferentes.

E naquele momento, ela desejou que não. Que nenhuma das suas lembranças fossem verdade, que o Eduardo se virasse e dissesse que o cara do churros colocou doce de lente a mais porque ele disse que sua namorada era a mais linda da festa.  Mas ele nem se virou, e nem ela teve forças para dizer ou fazer algo. Ficou ali parada e sentindo cada parte do seu corpo doer, como se ele fosse uma espécie de criptonita (aquela do Super-Homem).

A fila a frente deles já estava quase acabando, quando o maquinista perguntou para o jovem de cabelos claros e olhos negros se ele tinha companhia. A resposta foi não, então o barbudo de aparência cansada olhou para Valentina e fez a mesma pergunta. Sem dizer nada, ela apenas balançou a cabeça negativamente.

– Então vocês vão juntos.

Em menos de um segundo, essa frase se repetiu várias e várias vezes na cabeça da jovem garota ruiva.  Suspirou fundo, mordeu os lábios e finalmente, encarou o rapaz.

Por mim, sem problemas.

A reação dele foi justamente contrária a dela. Sem conseguir disfarçar a surpresa de tamanha coincidência, ele ainda sem acreditar no que estava acontecendo, caminhou ao lado da garota até os acentos do brinquedo.

Ela desejou alguém silencioso, e conseguiu. Nos primeiros minutos, antes do brinquedo realmente funcionar, ele não disse absolutamente nada. Apenas a olhou fixamente, sem acreditar que aquela era “sua Valentina”.

Um ano pode não ser muito tempo, mas é o suficiente para uma ferida de amor parar de sangrar.  A cicatrização pode ser longa e dolorosa, mas basta um olhar para que as centenas de textos ele-não-te-merece ou você-não-foi-feita-pra-ele percam todo o seu sentido.

Valentina tinha muito o que dizer, mas para aquele momento, queria mesmo era escutar. Uma explicação que fizesse tudo fazer sentido. Ou sei lá, uma certeza que fizesse ela nunca mais querer olhar na casa dele.

O roda gigante então estalou e começou a rodar.  A sensação de altura fazia tudo aquilo parecer ainda mais surreal.  As pessoas lá embaixo ficavam pequenas, e ele continuava ali bem na sua frente, do mesmo tamanho de sempre.

Eu senti sua falta durante todo esse ano. – Parece que ele não veio para explicar. Veio para confundir ainda mais.

Pois pra mim, você é indiferente. – Vai encenar aquela personagem durona que não acredita no amor, sério Valentina?

Sei que isso é mentira. Você não deve imaginar, mas eu ainda leio seus textos, eu sei o que você sente, sei como você se sente. E acredite, a dor de causar tudo isso é talvez seja maior do que sua.

–  Parece que alguém ainda não perdeu aquela mania de sempre se fazer o coitado da história.

– Não, você não entendeu. Só quero que saiba que também dói em mim.

Isso não me importa. Quero mesmo é que você e todas as suas pseudo-consequências se danem. A vida é uma questão de escolhas, e nesse mesmo dia, um ano atrás, você escolheu a opção que me tirava de vez da sua vida.

Sabe Valentina, eu conheci você quando eu ainda era um garotinho. Sempre foi a menina da minha vida. Te achava diferente de todas as garotas que costumava lidar lá em São Paulo, então minha paixão cresceu sem que eu pudesse perceber. Acredito que isso também tenha acontecido com você. Quando demos conta, já estávamos nos beijando e mandando emails carinhosos durante o período de aulas. Tudo isso era incrível, mas com o tempo, nasceu em mim paralelamente uma vontade de saber como era a vida sem você.

Não acredito que você está dizendo isso. – Disse a jovem enquanto sentia uma lágrima escorrer.

– Calma. Deixe eu terminar ok? Eu jamais teria coragem de trair você. Então, resolvi antes de fazer qualquer coisa, terminar. Fiz isso no pior momento de todos, no pior lugares de tudos. Foi nosso parque que demos o primeiro.

– E o último.

Eu tinha bebido com os meninos, jamais teria feito isso aqui e na frente de todo mundo. Mas aconteceu. E eu fui sincero com você, disse que não queria mais pra não poder de fazer sofrer menos. Odeio esse tipo de cara que não quer, mas continua iludindo.

– Oh, você tem valores. Que bonito.

Eu não estou aqui pra fazer com que você volte pra mim, eu estou aqui para que você me entenda. Depois que voltei pra casa daquelas férias, percebi a burrada que fiz. Talvez eu tenha tido que te perder, pra me lembrar o quanto você é diferente. Que eu não tenho motivos para querer descobrir como é a minha vida sem você, porque a minha vida é você.

– Então por que diabos você não veio me dizer isso antes?

Não é tão simples como parece. Eu não sou tão corajoso quanto você garota, acredito que saiba disso. Passei todo esse tempo visitando seu blog, lendo seus textos e não me perdoando por ter feito isso, entende? E se eu não me perdoava, por que você faria isso?

Porque eu te amo. Só isso seu idiota.

Então, quando ela terminou de dizer isso, a roda gigante parou lá no alto. Eles se olharam, e o silêncio do amor os envolveu novamente.  Ninguém precisava dizer mais nada, só fazer. Ele fez. Beijaram-se lentamente, e fizeram com o último ano não passasse de uma simples descida da roda gigante, e vejam só, agora eles estão lá em cima, e o mais importante, juntos.

No outro dia, encontraram perdida bem embaixo do brinquedo, uma pulseira de pedras brilhantes.  Eu, como mera observadora dessa história, espero que ela nunca mais a encontre.