você está lendo Entre aspas: Gente demais na cama!

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Você está deitada na cama com seu amor, uma cama que você gostaria de chamar de sua, mas não é possível: tem gente demais ali. É seu homem que, sem cerimônia, as convida a entrar. Primeiro vem uma, depois outra e mais outra. Elas atravessam as paredes, as portas, as vidraças e vão se deitando, todas, na cama que deveria ser sua.

Cada uma toma um bom espaço com sua presença acachapante de espectro: elas vieram do passado e no passado não há chatice, não há chulé, não há tédio, não há burrice, não há constrangimentos, não há falta de desejo. Elas, as mulheres que seu homem teve, são perfeitas.

Ele varre constantemente o salão de baile das próprias lembranças e deixa ali apenas o que foi melhor. Elas pertencem à festa e fizeram por merecer tal lugar: tudo bem. O problema é que não há tranca, barra, cadeira, armário que faça a porta desse salão de baile ficar fechada. Ali é ele quem manda e se ele diz “abre-te, sésamo”, elas todas entram, todas se aboletam na cama que deveria ser sua.

Você sente o espaço ficar cada vez mais exíguo e, veja, lá vem mais uma. Você se vira de um lado, de outro, tenta encontrar um cantinho onde se apoiar e, por muito pouco, não cai da cama: tem gente demais ali. Você pisca os olhos, sente o piscar, macera os olhos com a força dos cílios e das pálpebras, mas elas não vão embora: tem gente demais ali. Você se deitou para esticar os músculos, os nervos, o ventre, o sexo. Você se deitou naquela cama para ser você, mas tem gente demais ali. Elas são passado; você, presente. Porém, quando ele começa a falar delas, elas se tornam presente no agora. Elas estão presentes. Elas estão aqui. Elas incomodam.

E há os detalhes! Ele conta os detalhes da festa: sensações incríveis, imagens estupendas, de uma perfeição de face de Deus. O que você pode oferecer a um homem que já viu a face de Deus? Que ganhou o amor das profissionais do sexo, que fez delas o que bem quis, que protagonizou as mais indescritíveis fantasias, que foi estoica e estupidamente amado?

A cama está cheia e ele quer que você acredite que você não tem cacife para estar lá. Que seja. Tudo o que você tem é um caldeirão de feitiços que não foram lançados, seu legado é uma esteira de irrealizações e uma fome imensa, imensa de tudo.

Então você se encolhe no escuro, no pedacinho torto que sobrou para você naquele glorioso e povoado colchão. Em breve, será inevitável que você se levante, afinal, tem gente demais ali.

Quer saber quem escreveu esse texto? 

STELLA FLORENCE nasceu em 67, tem 1 filha, 30 tatuagens e 8 livros, entre eles os sucessos “Hoje Acordei Gorda”, “O Diabo que te Carregue!” e “32”. A mescla de humor e drama, além do verbo ácido, se tornou a marca registrada de sua literatura. Cronista veterana, há 3 anos escreve semanalmente para o portal feminino Itodas (www.itodas.com.br). Stella mantém o site www.stellaflorence.kit.net e o twitter @Stella_Florence