Eu ainda odeio o jeito que alguns grupinhos do colégio me encaram no intervalo. Principalmente aquele das meninas-super-poderosas. Pois é, fizeram questão de dar esse nome ao grupo. Mas vai por mim, não tem nada de docinho e lindinho ali. Sim, todas elas fizeram uma tatuagem de flor no pulso para simbolizar a amizade. E claro, criar um álbum idêntico no facebook. Eu juro que gostaria de me teletransportar toda vez que esbarro com elas na escada. Mas como isso ainda não é possível, né?
Todo esse clima bizarro que elas sempre deixavam no ar me fazia voltar no tempo. Quando eu ainda era uma novata naquele lugar. Minha mãe me obrigava a usar o uniforme que foi do primo de um vizinho. Adivinhem? Além de velho e ter alguns pequenos furos perto da gola, – segundo ela, quase imperceptíveis – eles eram enormes. Esse tal primo, que também tinha estudado naquela escola há alguns anos, tinha o corpo bem maior que o meu. Não era gordo, mas vestia pelo menos dois números a mais. Não culpa minha família. Sei que naquela época as coisas eram difíceis. Papai tinha acabado de morrer e o os meus irmãos estavam fazendo o possível para colocar algum dinheiro em casa.
Consegui bolsa naquela escola graças a minha madrinha. Logo que fui para a primeira série, me vendo estudar no pior colégio da cidade, claramente com pena, fez de tudo para conseguir aquela tal vaga. Falou com a diretora. Uma antiga amiga, acredito. Mostrou minhas notas e pediu uma chance. Eu seria uma aluna modelo e faria todos os alunos se inspirarem ha-ha. A notícia positiva foi recebida com uma festa lá em casa. Todos diziam que eu teria um futuro diferente e orgulharia muito a família.
Confesso que na época nem entendia direito o que estava acontecendo. Só que daquele momento em diante, todas as minhas amigas não seriam mais da minha sala.
A primeira lista de livros ficou quase 500 reais. Lá tudo era pago. Até a merenda do intervalo. Minha mãe arrumou um dinheiro emprestado no primeiro ano, e nos outros, foi juntando a cada mês. Lembro que tínhamos um cofre de porquinho rosinha na estante da sala, ao lado porta retrato do meu pai. Para aquele lugar iriam então todos os trocos da casa. Pedi várias vezes para tomar picolé com algumas moedas. Não ia fazer tanta diferença. Mas minha mãe sempre negava e dizia imediatamente “picolé não te garante futuro, filha”.
Meu primeiro dia de aula foi assustador. Não consegui dormir na noite anterior. Acordei pelo menos seis vezes para ver se não tinha esquecido de colocar nada na mochila. Lápis, canetas, a mesma bolsinha do ano passado, cadernos de capa mole com a primeira folha devidamente decorada e uma maça para comer no intervalo. Adormeci bem tarde e acordei também meio tarde. Minha mãe fez questão de me deixar na porta. Acho que naquele dia ela se emocionou e deixou uma lágrima escapar. Juro que não fazia ideia do qual importante aquele momento era. Sorri, e enquanto caminhava mais depressa para não correr o risco de chegar depois o que o portão da entrada já tivesse fechado, disse quase gritando: “não esquece de me buscar, tá?” Bobagem, acho que naquele dia minha mãe contou os minutos para saber minha opinião sobre a escola.
Cheguei em cima da hora, e o sinal já estava tocando. Era uma música estranha. Percebi que era o sinal porque vi todos os alunos caminhando em direção a um prédio verde água. Tudo era tão enorme. Fiquei assustada quando vi que o uniforme das outras pessoas eram diferentes do meu. Talvez uma nova versão. Ótimo, agora todos saberiam que eu era novata só de olhar para mim. Até aquele momento, não fazia ideia do que fazer. Felizmente um funcionário da escola, que estava fechando o portão naquele momento, disse que eu precisava correr para o pátio e olhar nas folhas qual seria minha sala durante aquele ano.
Corri toda atrapalhada na direção que ele apontou. Desci um morrinho e logo cheguei em um pátio enorme, com piso e paredes amarelados. Notei que nas pilastras, haviam folhas. Tentei encontrar meu nome na lista bem rapidinho. Mas parece que existiam muitas Carolinas por ali. Quando finalmente encontrei, corri ainda mais rápido para o lugar que todos estavam indo. Nessa altura eu era a única aluna ainda fora de sala. Quando cheguei na porta, no segundo andar daquele prédio, engoli a saliva, respirei fundo e pedi permissão para entrar. A professora olhou com cara de reprovação. Existiam muitas regras por ali, e uma delas era não se atrasar na hora da entrada. Mas como era o primeiro dia e eu claramente era uma novata, ela relevou. Disse para eu entrar em silêncio e procurar um lugar.
Tinha sido assustador conversar e levar uma bronca da professora logo de cara. Mas foi ainda pior quando notei que a sala estava lotada e que absolutamente todos os alunos estavam olhando para mim. Notei naquele momento que meus colegas da antiga escola não pareciam em absolutamente nada com aqueles. Ao invés de estarem felizes por eu estar ali, todos pareciam me julgar. Encontrei um lugar na segunda fileira, perto do armário. Sentei e logo olhei pra frente tentando ignorar os olhares cochichos que surgiam em paralelo. Será que eles achavam que eu era surda?
Bom, com alguns dias de aula eu percebi que o problema não era exatamente esse. O tempo foi passando e cada vez mais eu me sentia um peixinho fora d’água. Na verdade eu me sentia um peixinho no espaço. Ao contrário do que eu pensei, ninguém veio puxar papo. Nos trabalhos em grupo da aula de inglês eu sempre sobrava e ia notificar, com um adesivo de loser na testa, que eu ainda não tinha encontrado um grupo. A professora, coitada, acabava sempre contando as equipes e me colocando no lugar que tinha menos pessoas. Quero dizer, se alguma amiga do grupo x faltava, aquilo queria dizer que a chata aqui entraria.
Juro que eu me esforçava. A cada ano eu tentava ser mais simpática, mais engraçada e até me arrumar melhor. Enfim, parecer um pouco mais com aquele novo universo. O problema é que a cada ano os grupos, já formados, se tornavam mais fechados. Eu sempre fazia amizade com os novatos que entravam no começo do ano. Torcia para que na tradicional divisão de salas, caíssem dois ou mais na minha turma. Desde então, na primeira semana de aula, fazia bilhetinhos especiais dando boas vindas e colocava na mesa deles.
Acho que aquela foi minha melhor ideia até hoje. Isso me garantiu anos menos solitários. A cada ano eu fazia novos amigos. Alguns deles, com o tempo, ou melhor, com as novas amizades, paravam de falar comigo com tanta frequência. Outras se tornavam bons amigos.
Eu sempre fui tímida. Não era estranha, como faziam questão de me apelidar, era apenas calada. Minha realidade era muito diferente daquelas pessoas. Talvez essa tenha sido uma maneira que encontrei de me defender. Só falar sobre mim, e minha situação por ali, para as pessoas que eu realmente confiava e julgava merecer. Ou seja, cinco ou seis pessoas durante todos esses anos.
Perto do ensino médio uma coisa bem chata começou a acontecer: as meninas da sala começaram a se tornar inimigas. Motivos? Garotos. Parece que a competição tomou conta do cérebro delas. Quem ficaria com o garoto mais bonito? Quem teria mais pretendentes nas festas? Quem receberia o depoimento mais fofo no orkut? Enfim, quem seria a mais popular e desejada do ano.
Acho que um motivo da maioria delas sempre ter me odiado um pouquinho é o fato de eu viver andando com os meninos. Depois de um tempo, me tornei amiga de quase todos – menos dos mais babacas que viviam me colocando apelidos pra fazer graça pra elas – os garotos da série. E dos que estavam uma no acima também. O que era ainda pior. Porque elas me viam andando com eles e faziam questão de dizer “que eu não tinha graça nenhuma”.
Bom, disso eu não posso discordar. Nunca fui de frescura. Escola pra mim, principalmente no ensino fundamental, não era desfile de moda. Eu nem tinha condição para ostentar isso. Prometi pra mim mesma que não deixaria aquele novo universo afetar meus planos e sonhos. Eu tinha que continuar tirando as melhores notas e conseguir passar no vestibular federal. Essa era a grande missão. Minha, da minha mãe e da minha madrinha, que infelizmente já foi pro céu.
Fico me perguntando se valeu a pena passar por tudo aquilo. Mas aí eu fecho meus olhos e tento não pensar dessa maneira. Superar tudo aquilo era como dizer obrigada, do meu jeito.
No ensino médio meu corpo começou a mudar rápido demais. Estiquei, emagreci e as ondas do meu cabelo começaram a ficar mais definidas. Eu odeio isso, mas todo mundo lá de casa diz que é o meu maior charme. Um pequeno update: agora curto rock internacional e não vivo sem fone de ouvido. Na aula, tento disfarçar colocando alguns fios na frente da orelha. Isso, lógico, é proibido por ali. Não sou de passar muita maquiagem, só um lápis preto e um gloss sem cor.
Todas essas mudanças, ao contrário do que vocês devem estar pensando, não me tornaram a garota mais bonita na turma ou atrairam a atenção de todos os caras daquele jeito. Eu uso all star e ainda tenho que ficar esperta para sobrar na formação de grupos. Desculpa pelo choque de realidade, mas essa coisa de ficar popular graças a aparência só acontece nos filmes e séries. Por aqui, se você fica “gostosona”, você só é mais odiada pelas meninas. Não que esse seja o meu caso.
Minha nova aparência só me fez ficar um pouco mais segura. Agora, eu acho meu All Star rabiscado um máximo e juro, não tem nenhum comentário na vida real ou na internet, que mude essa minha opinião. Estou estudando feito louca para o Enem (vocês também?) e não vejo a hora de passar no vestibular e ser a mais nova estudante de jornalismo da cidade.