Por dias sem fim ele havia me contado sobre seu mestrado em literatura, sobre suas aulas para decifrar Lacan, sobre sua facilidade em escolher empresas para injetar dinheiro. Mas esse era o blábláblá típico dos primeiros encontros. Todo paulistano razoavelmente interessante e grisalho versa bem sobre livros, psicanálise e negócios. Ou sabe mentir bem sobre eles.
“Eu adoro intelectuais” é o mantra que me faz colocar vestido, salto alto, rímel importado e aturar um restaurante metido a besta e uma comida com redução de alguma coisa. Eu vou porque adoro livros russos, adoro entender minhas pulsões de morte, adoro homens que falam “private equity” como se falassem “passe o sal”.
Adoro até que dá meia-noite, e meu cérebro vira abóbora. A vozinha realista dentro da minha cabeça começa a matracar “se liga na pança desse desgraçado” ou “a careca dele tá brilhando mais que o brinco de diamantes que você comprou em 100 vezes”. Tem também o “putaquelamerda que bereba é essa no seu queixo?”.
Foram anos de sofrimento, do pré-primário ao colegial. Vendo aqueles garotos esportistas, suados, olhos verdes. Sonhando com suas bocas e mãos e pés e sobrancelhas. Eles passavam por mim e eu me sentia um cinzeiro sujo numa UTI: completamente equivocada. Minha vontade era de cutucá-los e pedir desculpa. “Desculpa eu ser magrela, usar aparelhos nos dentes e ter esse rodamoinho na franja, ok?”
Sonhei com esses rapazes durante toda a formação da minha libido. Eles pertenciam a um mundo secreto de festas, de roupas que ficavam bem no corpo, de amigos que riam de tudo, de casas na praia. O trauma é a única coisa realmente forte do nosso caráter. Então, quando estou nos restaurantes, com meus acompanhantes e seus 842 mestrados, suas neuroses e suas verrugas peludas no antebraço, sempre me pego pensando “olha aquele delicinha da mesa ao lado, deve ser uma anta, coitado, mas que vontade de umedecer com a língua os gominhos da sua barriga perfumada”. Eu respiro fundo, renego, me odeio, aumento a terapia… mas o menino mais bonito da escola ainda é meu algoz.
Sim, eu sei que existem homens bonitos e inteligentes e possíveis. Tudo isso no mesmo pacote. E tudo isso aqui na minha sala, agora mesmo, me perguntando se eu demoro muito para sair do computador e ir para a cama. A vida não é tão cruel. Mas, aos 12 anos, naquele recreio em que riram da minha dança numa feira idiota sobre cultura regional, viver parecia uma imensa injustiça. E essa mágoa ainda é um lego quebrado, eternamente sem encaixe, vagando deprimido e vingativo pelo limbo das minhas memórias.
Sobre a autora: Com certeza você já ouviu ou viu algo da Tati Bernardi por aí. Talvez tenha visto uma cena em algum programa na Rede Globo ou tenha lido um texto no perfil de alguém. Seus textos tem o estilo que toda adolescente gosta: confusão, mistério e muito amor.
Tati é paulistana e nasceu em abril de 1979. É formada em propaganda e marketing pela Universidade Mackenzie e fez pós graduação em vários cursos especializados de roteiro e cinema. Trabalhou nas melhores agências de propaganda do país durante oito anos e nos últimos dois anos se dedicou basicamente à literatura. Lançou os livros “A mulher que não prestava” e “Tô com vontade de alguma coisa que eu não sei o que é” pela Panda Books e atualmente colabora para revistas da Editora Abril como colunista e escreve programas de televisão para a Rede Globo. www.tatibernardi.com.br ou @tati_bernardi
*Na tag “entre aspas” divulgamos textos de autores brasileiros. Escreve? Deixe seu link nos comentários. Quem sabe seu trabalho não aparece aqui no blog Depois Dos Quinze?