Amor de literatura

28 de fevereiro de 2016
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Reprodução/Tumblr

Página 4. Eu nem sabia o que viria. Meu plano não era encontrar alguém tão cedo – até porque a última experiência tinha demorado para sair da minha cabeça – e foi dessa forma que segui minha rotina, sem me preocupar muito com essas coisas. Minhas obras favoritas não falam a respeito de um grande amor. Confesso, os meus livros de ficção até fazem surgir um coração acelerado ou outro, mas não é a paixão a grande força motriz, aquela que muda o rumo das coisas.

Aliás, tudo acontecia praticamente da mesma forma nos únicos livros de romance que li. Não gosto muito dessas coisas previsíveis!

Em todos os dias úteis, religiosamente, passo as tardes na biblioteca municipal para estudar e, depois, ler dois capítulos de um livro de fantasia qualquer. No início, eu tinha um pouco de vergonha, preferia a calmaria do meu quarto e o silêncio de minhas paredes com luzes de Natal (ué, pra que vou comprar se já tenho em casa?).

Mas, um dia, passei por lá e, por pura curiosidade, decidi ficar. Gostei. Percebi que a biblioteca era o ambiente perfeito! Sabe a expressão “peixe fora d’água”? Comigo o inverso aconteceu. Me senti totalmente parte daquele lugar, era o aquário certo para mim. O conhecimento transbordava!

O local, é claro, não tem o maior dos acervos, mas possui uma lista extensa de obras que me ajudam nos estudos e, além disso, a emoção de poder ler dois capítulos de um livro que eu nem imaginaria comprar (essas decisões geralmente são bem calculadas) me traz surpresas inesperadas. É divertido!

Página 182. Sério, como eu não notei antes? Dessa vez, trouxe a Maria Luiza para estudar comigo e fazer uma carteirinha para utilizar a biblioteca eventualmente. Sim, foi com muito esforço: eu disse que não desistiria enquanto ela pelo menos não experimentasse estudar aqui um dia.

Não funcionou muito: acho que, no final das contas, ela nem curtiu. Mas parece que as coisas sempre acontecem por um motivo…

Enquanto estudávamos o módulo dois de geografia, ela me perguntou se eu não tinha notado o menino de cabelos enrolados que, segundo ela, não havia tirado os olhos de mim enquanto procurávamos pela matéria. Olhei para ele e me veio uma vaga lembrança. Talvez eu já tivesse visto o garoto por ali, nas mesas, mas nunca reparei muito bem. Fato era que, agora, ele não estava mais nem aí: os olhos não desgrudavam das páginas. Absorto e concentrado. Será?

Página 228. E eu, que não gosto dos clichês, creio que minha história está se desenrolando tal como um deles. Fiz o teste e concluí: todas as vezes que vou escolher as obras nas estantes, ele me olha. Corro os olhos para o lado de forma bem rápida e quase não dá tempo de ele desviar. Nossos olhares se encontram e eu percebo que estou praticamente no meio dos capítulos de um livro apaixonado.

E não é só a aparência, os olhos e os sinais que me encantam nele. Às terças e quintas, o meu garoto chega mais tarde e consigo ver o último título que ele deixou na prateleira de devolução. A minha maior surpresa foi que, em todas essas vezes, encontrei um livro diferente por lá – quase sempre acompanhado de uma obra sobre mecânica, já que aparentemente ele estuda o assunto em questão. Ou seja: ele também escolhe qualquer obra aleatória para ler ao final dos estudos. Assim como eu.

Página 241. Já faz um tempo que começamos a conversar. Eu sei, devia ter tomado alguma iniciativa, mas simplesmente continuei tocando a rotina para frente, como quem aproveita os momentos de encanto do início do livro. Eles são tão bons!

Mas, melhor do que eles, são as nossas conversas. Nunca achei que encontraria uma alma tão densa, intensa, mergulhada em assuntos fascinantes – que me fazem adiar por uns momentinhos o meu eterno e grande amor, a literatura.

E assim confirmei minha suspeita de que ele partilhava do mesmo ritual que eu, aquele da escolha aleatória ao fim da leitura obrigatória. O nome disso pode ser coincidência, mas, no nível sentimental em que estou, me permito dar lugar ao meu primeiro clichê: prefiro acreditar que é um tipo de mágica.

Página 312. Acho que estamos naquela parte do livro em que a reviravolta acontece e a protagonista passa por algo inesperado e precisa resolver o problema da melhor forma. Sei o seu nome, suas paixões, seus títulos favoritos, fatos que ele me ensinou sobre assuntos variados e conheço também todas as suas feições de interesse, que surgem quando falo sobre mim.

O grande problema é que nossa última conversa aconteceu há várias semanas. Ele nunca mais voltou. Teve que mudar de cidade com a família. Foi com uma conversa demorada – durou uma tarde inteira – que tivemos a nossa despedida. Quando o sol foi dormir, dissemos adeus e seguimos nossos caminhos.

Página 399. A verdade é que não vou fazer a personagem que fica se lamentando pelos cantos, chorando pelo amor perdido. Sei reconhecer que foi bom enquanto durou – mesmo que nunca tenha se concretizado de fato – e valorizo os momentos pelos quais passamos juntos. Também não vou deixar de frequentar o lugar, sabe? Por mais que agora a biblioteca acenda em mim uma memória esquisita – feliz e triste -, continuo por aqui, com os mesmos hábitos e livros que tanto me fazem feliz.

Página 405. E eu que pensei que meu breve romance tinha terminado na última página das trezentas… Me enganei. Hoje, enquanto escolhia os livros, como de costume, senti uma presença ao meu lado. Era ele.

Não houve conversa, pedido de desculpas, lamentações, questões ou demais palavras. Nos olhamos e sentimos a reciprocidade da urgência que sentíamos em fazer o que queríamos fazer. Em meio a tantos livros, demos o beijo que fechou de forma linda o ciclo iniciado como em livros românticos.

Não havia necessidade de explicações. Eu estava, enfim, vivendo o meu amor de literatura.