Olho para a pilha de papéis que devo ler e anotar em vermelho e penso: caguei. Preferia umas cem vezes te ver saindo do banho novamente, limpo de mim. Pronto pra se sujar de mim novamente. Aí olho para essa pilha de livros que ensinam a roteirizar e penso: grande merda. Prefiria repassar pela milésima vez o roteiro que começa com você me beijando mais intenso, evolui pra você me beijando mais pra baixo e termina com você me beijando já sem forças.
Daqui a quarenta minutos chega o Paulão, meu personal. Mas eu olho para a minha roupinha de ginástica esticadinha em cima da cama e penso: foda-se. Preferia ouvir você dizendo de novo: vai, é sua vez de malhar. Preferia me irritar de novo com a sua preguiça de ficar em cima.
Chegou um e-mail com a programação completa do meu curso de yoga. Chegou outro com uma planilha de Excel cheia de datas que eu devo cumprir. Chegou outro com a mais nova modalidade de assalto na Henrique Schaumann. Grande bosta. Eu só queria que chegasse um e-mail seu. Ou melhor: que você chegasse ao vivo. E que você me trouxesse aqui a sua barriga, a sua nuca, a parte mais branca das sua coxas, a sua cara de bravo até pra sentir prazer e o seu cheiro de cigarro com amaciante. Me traz você, por favor. Me traz e leva embora todas essas coisas chatas que só servem para ocupar minhas horas enquanto você não chega.
Meu jornal me diz que a Record comeu uma boa parte do share. E eu querendo comer você. Minha revista me diz que a Petrobrás comprou a Ipiranga. E eu querendo te trazer numa sacola e te usar dos pés à cabeça. A internet me diz que a crise aérea não tem solução. E essa minha saudade de você? Será que tem? Não, o segundo casamento não é uma praga papa, praga é sentir isso. Praga é acumular jornais, revistas, livros e papelada. Tudo sem ler. Tudo sem sentir. Porque me jogar pelos cantos e suspirar você é só o que eu consigo fazer.
Aí eu tomo um banho bem quente, pra te espantar da minha pele. E canto bem alto, pra te espantar da minha alma. E escovo minha lingua bem forte, pra separar seu gosto do meu. E quase vomito, pra parir você do meu fígado. E tento ser prática e parar de suspirar. E tento abrir a geladeira sem me perguntar o que eu poderia comprar pra te agradar. E tento me vestir sem carregar a esperança de esbarrar com você por aí. E tento ouvir uma música sem lembrar que você gosta de se esfregar de lado em mim. E tento colocar uma simples calcinha e não uma bala perdida pronta pra acertar você. E tento ser só eu, simplesmente eu, novamente, sem esse morador pentelho que resolveu acampar em mim. E nada disso adianta. E o esforço pra não fazer nada disso já é fazer tudo isso.
E eu escrevo um parágrafo e corro pra ver se tem e-mail. E eu escrevo uma linha e corro pra ver se tem mensagem de texto. E eu não escrevo nada e também não corro, apenas deixo você chegar aqui do meu lado, em pensamento. E me pego sorrindo, sozinha. E me pego nem aí para todo o resto.
Mas sabe o que acontece enquanto isso? Enquanto eu não me movo porque estou lotada de você e me mover pesa demais? O mundo acontece. O mundo gira. As pessoas importantes assinam contratos, ganham dinheiro. As pessoas simples lutam por um lugar na condução, um lugar no mundo. Estão todos lutando. Estão todos ganhando dinheiro. Estão todos fazendo algo mais importante e mais maduro do que suspirar como uma idiota e só pensar em você.
Eu tenho muita inveja dessas pessoas maravilhosas, adultas, evoluídas e espertas que conseguem separar a hora de ir a uma reunião de condomínio com a hora de desejar alguém na escada do condomínio. A hora de marcar o dentista com a hora de engolir alguém. A hora de procurar a palavra “macambúzio” no dicionário com a hora de se perder com as suas palavras que de tão simples parecem complexas. A hora de ser inteira e a hora de catar meus pedaços pelo mundo enquanto você dá sinais desmembrados.
Eu não consigo nada disso, eu me embanano toda, misturo tudo, bagunço tudo. A minha única dúvida é se sou a única idiota a fazer isso comigo ou se sou a única idiota a admitir que faço isso comigo.
Sobre a autora: Com certeza você já ouviu ou viu algo da Tati Bernardi por aí. Talvez tenha visto uma cena em algum programa na Rede Globo ou tenha lido um texto no perfil de alguém. Seus tem o estilo que toda adolescente gosta, confusão, mistério e muito amor.
Tati Bernardi é paulistana e nasceu em abril de 1979. É formada em propaganda e marketing pela Universidade Mackenzie e fez pós graduação em vários cursos especializados de roteiro e cinema. Trabalhou nas melhores agências de propaganda do país durante oito anos e nos últimos dois anos se dedicou basicamente à literatura. Lançou os livros “A mulher que não prestava” e “Tô com vontade de alguma coisa que eu não sei o que é” pela Panda Books e atualmente colabora para revistas da Editora Abril como colunista e escreve programas de televisão para a Rede Globo. www.tatibernardi.com.br ou @tati_bernardi
*Na tag “entre aspas” divulgamos textos de autores brasileiros. Escreve? Deixe seu link nos comentários. Quem sabe seu trabalho não aparece aqui no blog Depois Dos Quinze?